
José Eymard Loguercio defendeu que a legislação trabalhista e sindical precisa acompanhar as transformações do sistema financeiro nas últimas décadas.
No segundo dia da Oficina de Organização do Ramo Financeiro, o advogado José Eymard Loguercio, assessor jurídico da CUT Nacional, defendeu que a legislação trabalhista e sindical precisa acompanhar as transformações do sistema financeiro nas últimas décadas. Ao apresentar um panorama do marco legal que estrutura — e ao mesmo tempo limita — a organização sindical no setor, ele sustentou que há caminhos jurídicos para ampliar a base de representação dos bancários, alcançando trabalhadores que hoje atuam “como bancário”, mas não têm os mesmos direitos conquistados pela categoria.
O modelo sindical antes e depois da CF 88
Loguercio começou com um resgate histórico para explicar como se consolidou o modelo sindical brasileiro. Segundo ele, antes da Constituição Federal de 1988, o enquadramento sindical era atribuição direta do Ministério do Trabalho e se baseava em categorias amplas e genéricas. “No ramo do crédito, por exemplo, trabalhadores eram agrupados em grandes blocos vinculados às confederações nacionais do setor, tanto patronais quanto profissionais”, lembrou. Naquele período, prevalecia o chamado “paralelismo”, segundo o qual só poderia existir uma entidade de trabalhadores se houvesse uma entidade patronal correspondente.
Esse desenho, no entanto, foi superado pela CF 88 e, posteriormente, pelo entendimento consolidado do Supremo Tribunal Federal (STF), que afastou a obrigatoriedade do paralelismo entre entidades econômicas e profissionais. “Essa mudança flexibilizou o modelo anterior e abriu espaço para rearranjos relevantes na estrutura sindical, permitindo desvinculações e novas formas de organização mesmo sem um ‘espelho’ patronal equivalente”, informou. Apesar disso, ele alertou que a exigência do paralelismo ainda aparece, de forma equivocada, em parte do debate público.
CLT ainda reflete o banco dos anos 1940
Ao trazer a discussão para o setor financeiro, Loguercio apontou o descompasso entre a realidade do mercado e os “quadros” da CLT. Segundo ele, o modelo de enquadramento ainda carrega uma fotografia do sistema financeiro dos anos 1940, quando o setor era simplificado, não havia Banco Central e o Banco do Brasil tinha centralidade. Por isso, o enquadramento sindical ficou restrito aos bancos e a poucas atividades anexas, como seguros e capitalização. O problema, segundo o ele, é que o capitalismo financeiro se expandiu e se reorganizou, operando hoje por meio de múltiplas instituições além dos bancos tradicionais, enquanto a legislação permaneceu presa a um modelo antigo.
A criação do “financiário” pela Justiça do Trabalho
Foi nesse vácuo, disse o palestrante, que a Justiça do Trabalho passou a construir soluções próprias. Uma delas foi a criação da figura do “financiário” — categoria inexistente na lei, mas usada para enquadrar trabalhadores de empresas que não são bancos formais, no entanto realizam atividades tipicamente bancárias. A consequência prática mais evidente foi a aplicação do artigo 224 da CLT, garantindo a jornada de seis horas para esses trabalhadores, ainda que os mesmos não estejam cobertos pela Convenção Coletiva de Trabalho (CCT) nacional dos bancários.
Sistema financeiro ampliado
Na avaliação de Loguercio, o sistema financeiro deve ser compreendido a partir de um pressuposto legal: ele é composto por instituições reguladas, autorizadas ou supervisionadas pelo Banco Central, ainda que em diferentes graus. Nesse contexto, ele apontou a existência de um déficit regulatório que, segundo sua análise, não é casual, mas ligado a imperfeições que estão associadas a interesses específicos. O advogado destacou que “novos atores” passaram a integrar esse “ecossistema” sem serem bancos propriamente ditos, como sociedades de crédito (incluindo cooperativas), fintechs e instituições de pagamento. “Mesmo fora do ‘conceito clássico’ de banco, essas empresas não estão à margem do sistema financeiro”, afirmou.
A dificuldade do Judiciário em acompanhar as mudanças
O desafio, segundo o assessor da CUT, é que essa transformação nem sempre é compreendida pelo próprio Judiciário. Em diversos momentos, a categoria bancária é interpretada de modo restritivo, limitada a bancos e bancos múltiplos, como se o setor ainda funcionasse nos moldes dos anos 1940. “Esse descompasso entre realidade e interpretação jurídica impacta diretamente a representação sindical e a distribuição de direitos”, apontou.
Fintechs: quando o registro não condiz com a atividade
A distância entre o “papel” e a atividade real aparece também na forma de registro das empresas. Loguercio observou que muitas fintechs, ao se organizarem por Classificação Nacional de Atividades Econômicas (CNAE) e CNPJ, não se classificam como atividade financeira e surgem formalmente como empresas de tecnologia, suporte ou manutenção. Na prática, porém, operam serviços típicos do setor bancário, como movimentação de contas, meios de pagamento, crédito e serviços financeiros digitais. É justamente essa contradição, segundo o advogado, que coloca o Movimento Sindical diante de um problema novo: como enquadrar, representar e negociar coletivamente para trabalhadores de empresas que não são bancos no registro, mas funcionam como bancos no cotidiano?
Efeitos no enquadramento e na negociação coletiva
Na negociação coletiva, essa diferença produz efeitos concretos. De acordo com o assessor jurídico da CUT, em alguns estados, bancários e financiários estão no mesmo sindicato, enquanto, do lado patronal, diferentes tipos de instituições podem compartilhar base econômica sem necessariamente integrar a Fenaban. “Por isso, a convenção nacional dos bancários não alcança automaticamente todo o setor, e foi preciso construir instrumentos específicos para os financiários — categoria que segue reconhecida tanto do ponto de vista jurídico quanto sindical”, explicou.
TST: precedentes e disputas em aberto
Ao comentar debates recentes no Tribunal Superior do Trabalho (TST), José Loguercio lemboru que “no sistema de precedentes, entendimentos pacificados tendem a ser reafirmados”. Ainda assim, há controvérsias e, nesses casos, o que diferencia o enquadramento é o relato concreto do trabalho e da atividade desenvolvida.
No caso das cooperativas de crédito, ele lembrou que o TST sustentou por anos o entendimento de que elas não se equiparam a bancos, afastando o enquadramento como bancário. “Ainda assim, ações trabalhistas frequentemente pleiteiam jornada de seis horas e, por vezes, a aplicação da convenção dos bancários”, disse.
Correspondentes bancários e análise do trabalho real
Outro tema destacado foram os correspondentes bancários. Segundo o advogado, há uma jurisprudência quase consolidada no TST — ainda sem súmula ou orientação específica — afirmando que correspondentes não exercem atividade típica e privativa de instituição bancária ou financeira. “Acontece que muitas decisões se baseiam em uma visão abstrata e não examinam com profundidade a realidade concreta do trabalho”, observou. O desafio seria separar casos realmente fora da atividade financeira daqueles vinculados a atividades supervisionadas, abrindo espaço para disputa e revisão dos enquadramentos.
Categoria, concorrência e unidade de classe
Ao final, Loguercio apresentou uma leitura estratégica para o Movimento Sindical. Para ele, a definição de categoria deve partir da atividade econômica e do sistema concorrencial, e não da forma jurídica da empresa. “Cooperativas de crédito, concorrem no mercado financeiro — e não com cooperativas de natureza diversa —, o que sustenta sua inserção no campo bancário ou financiário conforme a trajetória histórica do setor”, exemplificou. Na mesma linha, defendeu que, como o sistema financeiro regula simultaneamente mercado e trabalho, funções exercidas no mesmo sistema concorrencial deveriam receber tratamento equivalente do ponto de vista sindical e trabalhista.
Riscos da fragmentação sindical
Nesse cenário, o assessor jurídico da CUT alertou para riscos da fragmentação sindical e criticou iniciativas de criação de categorias diferenciadas por lei, especialmente no universo das cooperativas. Para ele, esse caminho “rompe a lógica concorrencial que sustenta o conceito de categoria, desloca o conflito para o Judiciário e delega a tribunais — muitas vezes pouco preparados para a complexidade do sistema financeiro contemporâneo — a tarefa de redefinir enquadramentos e formas de representação”.
Agregação como estratégia para ampliar direitos
Como saída, Loguercio destacou a importância de distinguir dois planos: a representação legal (enquadramento formal) e a organização estatutária, que permite formas mais flexíveis de articulação, como consórcios sindicais e frentes intersindicais. “O objetivo é recolocar a agregação como valor político, reconhecendo a diversidade do setor, mas organizando-a a partir de uma referência comum de classe”, defendeu. Para ele, a cobertura sindical ainda está muito restrita ao modelo de banco clássico de 1943. “Ampliar a representação e, ao mesmo tempo, reduzir desigualdades de direitos dentro do mesmo sistema financeiro exige inovação organizativa, disputa jurídica e monitoramento permanente da regulação”, sintetizou.
Fonte: Bancários RS