O resultado das eleições gregas de 17 de junho, a vitória apertada do partido conservador Nova Democracia sobre o esquerdista Syriza e a formação de um governo de coalizão pró-europeu suscitou, previsivelmente, um gigantesco suspiro de alívio em toda a Europa: a catástrofe tinha sido evitada por pouco, o euro e a unidade europeia prevaleceram…
O que aconteceu, na realidade, foi que se perdeu uma oportunidade única para a Europa finalmente encarar a profundidade de seu impasse econômico e político. O suspiro de alívio queria dizer: evitamos despertar, podemos continuar a sonhar. Recentemente, Richard Quest, da CNN, propôs uma metáfora adequada para descrever esse sonhar quando comparou as autoridades europeias aos proverbiais malabaristas do circo.
Esses artistas talentosos que equilibram pratos giratórios na ponta de bastões, aumentando sempre o número de bastões, correndo de um para outro e empurrando para que continuem girando, sempre conscientes de que, se girarem rápido ou devagar demais, um dos pratos cairá ao chão e se espatifará. É exatamente isso o que temos na Europa hoje. Só que os artistas são o presidente do Banco Central Europeu, Mario Draghi, o líder do grupo do euro Jean-Claude Juncker, o presidente da Comissão Europeia, José Manuel Barroso etc. enquanto os pratos a girar são a Grécia, os bancos espanhóis, os deficits italianos, os títulos governamentais europeus e a chanceler alemã Angela Merkel.
A cada dia parece que há mais pratos girando, e os malabarismos dos artistas ficam mais frenéticos enquanto eles correm de um lado a outro, sempre proclamando que o show está prestes a acabar. Não é o caso, infelizmente. É provável que os malabarismos continuem por algum tempo ainda.
Girar pratos é o que os eurocratas de Bruxelas vêm fazendo: acrescentam interminavelmente novos pratos para adiar o ponto crítico, tornando o equilíbrio cada vez mais frágil e mais apoiado em ficções financeiras.
O Syriza foi acusado de promover ficções de esquerda mas o plano de austeridade imposto por Bruxelas é que é um belo exemplo de ficção: num gesto estranho de faz de conta coletivo, todo mundo sabe que esses planos são fictícios, que o Estado grego jamais poderá saldar a dívida, e todo mundo ignora a insensatez óbvia da projeção financeira sobre a qual os planos são baseados. Por que, então, Bruxelas impõe esses planos?
O que importa no capitalismo contemporâneo é que os agentes atuem a partir de suas supostas crenças em relação às perspectivas futuras, independentemente de acreditarem realmente, ou não, nessas perspectivas. E, como todos também sabemos, o verdadeiro objetivo dessas medidas de resgate não é salvar a Grécia, mas salvar os bancos europeus.
Há uma brincadeira maravilhosamente dialética na comédia Ninotchka, de Ernst Lubitsch (1892-1947): o herói vai a um café e pede um café sem creme. O garçom responde: “Sinto muito, nosso creme acabou, só temos leite. Posso lhe servir um café sem leite?”. Nos dois casos, o freguês recebe o café puro, mas a cada vez acompanhado de uma negação diferente: primeiro, café sem creme, depois, café sem leite.
A Grécia se encontra diante do mesmo dilema: a situação é difícil, os gregos terão algum tipo de austeridade imposta a eles mas terão o café da austeridade sem creme ou sem leite? É nesse ponto que o establishment europeu mente. Ele age como se a Grécia fosse ganhar o café da austeridade sem creme (em que os frutos do sofrimento imposto a eles não vão beneficiar só os bancos europeus), mas, concretamente, oferecem aos gregos café sem leite (não serão os gregos que vão se beneficiar do sofrimento pelo qual vão passar).
Para ilustrar o erro das medidas de austeridade empreendidas como estratégia principal para combater a crise, Paul Krugman frequentemente as compara à cura medieval da sangria metáfora adequada, que deveria ser radicalizada ainda mais. Os médicos financeiros europeus, incertos quanto ao funcionamento de sua medicina, estão usando os gregos como cobaias e tirando o sangue deles os gregos, e não os de seus próprios países. Os grandes bancos alemães e franceses não estão sofrendo sangria nenhuma pelo contrário, estão recebendo transfusões contínuas e enormes.
O Syriza não é um grupo de extremistas perigosos: ele está aqui para levar bom senso pragmático, para arrumar a confusão criada por outros. Aqueles que impõem medidas de austeridade são os sonhadores perigosos: os verdadeiros sonhadores são aqueles que pensam que as coisas podem continuar por tempo indeterminado do modo como estão, bastando efetuar algumas mudanças superficiais.
Os partidários do Syriza não são sonhadores, estão despertando de um sonho que está virando um pesadelo. Eles não estão destruindo nada, estão reagindo ao modo como o sistema vem destruindo a si mesmo.
Todos conhecemos a cena clássica dos desenhos animados: o gato chega a um precipício, mas continua a andar, ignorando o fato de que não há mais chão sob seus pés; ele só começa a cair quando olha para baixo e toma consciência do abismo. O que o Syriza está fazendo é apenas lembrar ao establishment europeu que é preciso olhar para baixo.
O Syriza é um movimento radical de esquerda que abandonou a posição cômoda da resistência marginal e corajosamente assinalou sua disposição em assumir o poder. É por isso que os gregos devem ser castigados ou, como escreveu Bill Frezza na Forbes, no texto “Dêem à Grécia Aquilo que Ela Merece: o Comunismo”: “O que o mundo precisa, caso esqueçamos, é de um exemplo contemporâneo do comunismo em ação. […] Basta jogar os gregos para fora da União Europeia, cortar o fluxo de euros gratuitos e lhes devolver as chapas de impressão dos seus velhos dracmas. E então recuar uma geração e observar.”
A velha história do Haiti após 1804 se repete aqui: a Grécia deveria ser punida de modo exemplar para bloquear de vez qualquer tentação de uma solução esquerdista radical para a crise.
Quem realmente mereceu ter dado um suspiro de alívio após a divulgação dos resultados eleitorais foi o Syriza. Segundo uma anedota conhecida (e provavelmente apócrifa), na noite antes da Revolução de Outubro, Lenin, preocupado, perguntou a Trotsky: “O que vai acontecer se perdermos? O que vamos fazer?”. Trotsky teria respondido: “Estou mais preocupado com o que vai acontecer se vencermos.”
No caso de vitória, a tarefa que o Syriza teria pela frente teria sido quase impossível: trabalhar por um Estado melhor, eliminar o clientelismo da máquina de Estado e até, isso mesmo, lutar por um capitalismo mais eficiente.
Os críticos odeiam o Syriza porque, em segredo, sabem que o partido tem coragem de ser livre e agir como tal. Quando o Syriza está sob o olhar do público, os que o observam entendem que o Syriza lhes oferece liberdade, que o Syriza ousa fazer aquilo que eles também sonham. Por aquele instante, eles estão livres, estão em unidade com o Syriza, mas é apenas um instante; o medo retorna, e eles voltam a odiar o Syriza, porque têm medo de sua própria liberdade.
Foi dito que o Syriza não tinha experiência para governar: sim, ele não tem experiência de como levar um país à falência, experiência em roubar e fazer maracutaias. Isso nos conduz ao absurdo da política do establishment europeu: ele prega a doxa de pagar impostos, contra o clientelismo grego e deposita todas suas esperanças na coalizão dos dois partidos que levaram esse clientelismo à Grécia.
A vitória da Nova Democracia foi fruto de uma campanha brutal, repleta de mentiras e fomento do medo a mais pura política do medo, traçando um quadro da Grécia dominada pela fome, pelo caos e pelo terror de um Estado policial, no caso de uma vitória do Syriza.
Um dos paradoxos da campanha foi que a mídia que atacava a Alemanha (comparando a pressão de Bruxelas a uma nova ocupação alemã, a uma repetição de 1940; apresentando Angela Merkel de uniforme nazista etc.) é a grande mídia controlada pelo pró-europeu Nova Democracia, que também estava prometendo limpar as ruas gregas e usar o dinheiro europeu para construir 30 centros de detenção de imigrantes ilegais.
A pressão da UE sobre a Grécia para implementar as medidas de austeridade corresponde perfeitamente ao que a psicanálise classifica como o superego. O superego não é bem uma entidade ética, mas um agente sádico que bombardeia o sujeito com exigências impossíveis, comprazendo-se obscenamente com o fracasso dele em atender tais exigências.
O paradoxo do superego é que, como Freud enxergou, quanto mais obedecemos às suas exigências, mais nos sentimos culpados. Feito um professor malvado que impõe tarefas impossíveis a seus alunos e zomba deles sadicamente quando vê sua ansiedade e seu pânico. É isso o que está tão errado com as exigências da UE: nem sequer dão uma chance à Grécia. O fracasso grego faz parte do jogo.
Há uma anedota apócrifa sobre telegramas trocados entre os quartéis-generais dos exércitos alemão e austríaco na Primeira Guerra Mundial. Os alemães enviaram a mensagem “aqui, em nossa parte do front, a situação é séria, mas não catastrófica”. Os austríacos responderam: “Aqui a situação é catastrófica, mas não séria.”
Essa foi e ainda é a diferença entre o Syriza e outros: para os outros, a situação é catastrófica, mas não séria, eles querem continuar com as coisas como sempre foram.
Para o Syriza, a situação é séria, mas não catastrófica, já que coragem e esperança precisam tomar o lugar do medo.
Autor: Slavoj Žižek.
* Publicado originalmente na Folha de S.Paulo, caderno Ilustríssima de 15 de julho de 2012.
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